O defunto
falecido
Há histórias que originam
verdadeiros filmes, pois são invulgares e com conteúdo forte, tornando-se bizarras
quando analisadas com sentido crítico. No Portugal profundo não há só as
histórias populares da tradição oral, também há outras histórias que possuem a
dualidade do real e da fantasia, capazes de dar algum contentamento a um
realizador neorrealista.
Conheci
uma figura impar, já desaparecida, que assinou como autor de algumas histórias
bizarras, e que, contadas e recontadas na 1ª pessoa, lhe pertencem do princípio
ao fim. Com personalidade aventureira, habituado às adversidades da vida, capaz
de imensas proezas inimagináveis, sem os valores bem aferidos, disposto a
correr riscos e com uma linguagem pejada de asneiras cabeludas constantes...
ele contou que, num momento da sua vida, entre diversas profissões ocasionais
que desempenhou, fazia com um automóvel citroen
“boca de sapo” com 4 vitesses para a
frente, viagens entre Portugal e França, servindo especialmente os emigrantes portugueses,
transportando-os ou realizando serviços legais e ou ilegais, dependendo do
ponto de vista e do preço. Não era zarolho, mas corria riscos na mesma, sem
grande responsabilidade e sem medir as consequências para ele e muito menos
para os outros. Penso que a ilegalidade era o fato que lhe assentava melhor.
Um
belo dia deparou-se com o desafio de transportar ilegalmente um defunto
falecido numa bidonville parisiense para Portugal, já que os familiares não
teriam dinheiro para a trasladação legal ou nem saberiam como faze-lo. O
transporte de um falecido envolve responsabilidade médica e jurídica, um
processo burocrático enorme, e ter a bolsa recheada de dinheiro para fazer face
às despesas. Os familiares tinham poucos recursos, apesar do carro em 2ª ou 3ª
mão guardado para vir de férias au Portugal.
Ele
dispôs-se a faze-lo sem grandes complicações, recebendo logo à partida a
remuneração combinada para lhe dar ânimo para a viagem. Recolheram alguns
francos pelos diversos filhos, e apostaram as “fichas” todas nesta solução.
Recolheu
o defunto que tinha falecido há menos de uma hora, vestiu-lhe um fato preto,
sentou-o e amarrou-o ao banco do passageiro do carro dele (ainda não havia
cintos de segurança), apertou-lhe o casaco, colocou-lhe un chapeau e a gravata e rematou com uns vérres bem escuros. Arrancou para Portugal, um Portugal que ainda
não era Europa, com a garrafa de bagaço no porta-luvas e os cigarros 3 vintes
no bolso da camisa. A família seguia noutra viatura, à derrière..
O
defunto falecido portou-se muito bem, parecendo dormir o caminho todo. Pararam
para dormir um pouco. Pararam para fazer as refeições – o farnel do arroz de
frango e umas sandes de fromage. O
defunto não teve fome, manteve-se sereno, abstémio e sempre com os seus óculos
escuros, que ora lhe filtravam o sol, ora lhe filtravam o luar…parecendo
dormitar. O queixo descaia um pouco e foi preciso reforçar o visual com um
cachecol. Numa das fronteiras, os carabineiros, rodearam o carro, espreitaram, pediram
documentos, interrogaram e respeitaram o sono do senhor adormecido. A família
em pânico dentro da sua viatura, visualizando todas estas operações, rezavam
pai nossos e avé marias à Nossa Senhora de Fátima, para que o defunto não fosse
convidado a sair….
O
motorista aventureiro quando recontava a história dizia que o pior estava para
vir.
Entraram
au Portugal com sucesso e chegaram à aldeia lá para os lados de Montezinho, onde
a urna e a cova no cemitério já estariam abertas e toda a papelada tratada,
pois previa-se o odor insuportável do final da viagem. De facto o pior estaria
para vir, e que seria retirar o defunto do veículo que o acolhera ainda quente
e por mais de 30 horas de viagem.
O post
mortem, a viagem, as fronteiras e o fumo do permanente cigarro 3 vintes do autor
desta proeza, endureceram-lhe os músculos, os tendões, o comportamento e até a
alma. O homem era grande, vinha bem encaixado entre a cadeira e o tablier, teso como um presunto, sem
maleabilidade alguma para se retirar do veículo.
-
Então Galdra? como resolveste le problèm?
- Ca,
ca ....lho. (ele era gago) titive que que lhe partir as pernas! Q’até deu jeito
para o meterem na urna, senão ela não fechava com as pernas dobradas.
No
final todos os ouvintes riam por imaginar o Gualdra com um martelo a fazer o
desencarceramento do defunto dorminhoco.
-
Olha lá e se os Carabineros tivessem percebido e mandassem sair o senhor do
chapéu?.
-Ca,
cara .... lho eu já estava a penpensar, pupu..a que pariu eu eu fingia que quia
buscar os dodocumentos ao cacarro queque nos seguia e fugia que nunnunca
mais ninguém meme apanhava!.
Pobres
dos familiares, que pagaram bem e seguiram confiantes este aventureiro, que nem
pensaria duas vezes em deixa-los a todos em maus lençóis.
Um
cromo esta figura!
Digam
lá se não dava um filme????!!!!!
In” Estórias de um Portugal
profundo” Anabela Quelhas