sábado, 25 de julho de 2020

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Homenagem a José Fernando Correia - 100 anos

Homenagem a José Fernando Correia
Das mais remotas lembranças guardadas nas gavetas da memória, figura de uma forma constante a presença de um tio. De quando em vez, abro essa gaveta, para o deslizar se mostrar eficaz, evitando que a ferrugem ou o caruncho corroa os pormenores registados por uma criança com três anos de idade.
A articulação das palavras “chinelo” e “chalado” são as senhas de acesso a tão estimada gaveta.
Revejo-me a admirar uma acção de higiene pessoal que ele fazia com primor para me divertir.
Um escovar de dentes que cumpria um ritual quase religioso e se estendia por uns dez minutos.
Um primeiro olhar pelo pequeno espelho do lavatório, um aproximar a dez centímetros de distância, um mostrar de dentes num sorriso forçado e verificação da cor da língua, a cor do interior das pálpebras, constituíam os preparativos para dita acção acrescidos ainda da escolha da escova feita por mim, a partir pura e simplesmente da cor, a colocação do dentífrico pasta medicinal Couto, a embalagem amarela que servia para eu descolar.
E então começava a operação:
- bochechar bem com água
- escovar os dentes os incisivos, depois os caninos e mais tarde os molares.
- bochechar
- escovar a parte posterior, na mesma ordem
- bochechar
- escovar a língua também
- repetir tudo outra vez
Tudo isto intervalado pelo olhar sobre o espelho, e pelas minhas infindáveis perguntas, às quais o meu tio respondia para o espelho cheio de paciência.
Logo a seguir começava a fazer a barba.
Os mesmos gestos meticulosos, quase estudados fazendo o sabão e afiando a navalha. Depois pintalgava o meu nariz, com a espuma alva, e ensaboava a face de pincel. Nessa parte eu retraia-me um pouco, pois perdia de vista a familiaridade da face do meu querido tio.
Começava a raspagem exímia, obedecendo às caretas que ele fazia ao espelho, imprimindo o movimento correcto à navalha. O acertar do bigode me dava enfado pelo que aproveitava para ir saltar sobre o colchão da cama até começar outra operação da toilette que me agradava, o pentear.
O meu tio ensaiava diversos penteados para me agradar, até finalizar com um risco ao lado, traçado milimétricamente segundo um segmento de recta perfeito, separando os cabelos em fios paralelos desenhados pelo pente.
Ainda de roupão ensaiava uma dança comigo. Pelo bater dos pés calçados de chinelos vermelhos, seria um fandango, um sapateado,…. um flamenco talvez, que me deixava a rir de riso dobrado, como só as crianças sabem fazer.
A minha tia, sempre presente, dizia-me, ternurenta:
- O Zé é chalado, diz-lhe, és um chalado!!!
............
Presenciei umas horas antes do seu fim, a luta que travou com a morte, e abri mais uma vez esta gaveta, que me continua a unir afectivamente a ele, recheada de pormenores que adoçam a sua personalidade um pouco difícil.
Hoje seria o seu 100º aniversário.
Parabéns, tio.
(1/07/1920 - 16/02/2003)