terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Memórias filtradas pelo trópico de Capricórnio

Memórias filtradas pelo trópico de Capricórnio

- O Abel já chegou? – perguntei sentando-me à mesa e servindo-me para almoçar.
- O Abel ainda não chegou – respondeu a minha mãe.

- O Abel está para chegar? – perguntei no dia seguinte.
- Siiiiim. – respondeu a minha mãe.
- E como sabes?- perguntei.
- Escreveram da Metrópole, avisando-me que viria. – esclareceu a minha mãe.

- O Abel já chegou? – perguntei noutro dia.
- Não. Ainda não.
- Ele demora tanto tempo a chegar?! – questionei eu.
- Sim, ele não vem de avião. Vem de barco com os outros militares. – informou o meu pai.
- De barco??? – surpreendi-me.
- Sim de barco, daqueles barcos grandes que se costumam ver ao largo no porto de Luanda.
Sentei-me à varanda, de queixo encostado ao peitoril, observando a linha do horizonte que teimava em ser curva, limitando o mar feito de azul e que fazia parte não só da minha vida real, como do meu imaginário.
Tentei descobrir os barcos ao largo, lá longe ao lado da Ilha de Luanda.
Havia alguns flutuando ao largo da costa.
Os meus olhos saltitavam duns para os outros imaginando um barco cheio de pessoas, e esquecida já por quem se esperava, pois um qualquer pormenor me absorvia a atenção e o meu tempo infantil.

- O Abel já chegou? – perguntei um dia mais à frente, através daquela aborrecida insistência que caracteriza algumas crianças, de fazer sempre a mesma pergunta.
- Ainda não teve tempo. - respondeu o meu pai.
O tempo para mim era uma incógnita desconfigurada pela ansiedade de receber alguém que conhecia, que os meus pais certamente acarinhariam como de costume, e que iria alterar a rotina dos almoços ao domingo. Sem as minhas irmãs por perto, passei a desempenhar o papel enfadonho de filha única, sem ninguém para traçar os meus tempos livres, nem sempre preenchidos de brincadeira.

- Quanto tempo dura uma viagem de barco? – perguntei preocupada por esta parecer não ter fim.
- Oito dias ou mais. - diziam eles.
- Jacinto, tens que ir passando lá pelo porto, para saber quando chegará. – lembrou a minha mãe.
- Ninguém informa sobre a chegada dos militares. - esclareceu o meu pai. – Se ficam em Luanda, mal cheguam a terra são imediatamente transportados para o Grafanil. Não me deixarão vê-lo, nem acercar-me do barco acostado.
- Então não vamos esperá-lo? – perguntei decepcionada.
Vi anular-se uma visita ao porto e diversas horas de espera junto ao cais de Luanda, possibilitando-me a observação das manobras de acostagem, vislumbrando os viajantes ainda a bordo, espreitando-nos do tombadilho e dizendo-nos adeus, as idas e vindas do delegado de saúde, da policia marítima, da PIDE….., aquele buzinão profundo que assinala a partida dos barcos, os estivadores carregando outros barcos, os guindastes, os contentores…. o lançamento das âncoras, a colocação da pequena e frágil escada que ligaria o barco ao cais, as formalidades em terra sobre a chegada, coisas de alfândega e policia, e finalmente os abraços dos reencontros.
Iria perder isso tudo.
Ia directo para o Grafanil!
- Se não ficarem em Luanda, podem acostar ou não. Alguns barcos ficam ao largo, mas ninguém desembarca.- adiantou o meu pai.
-Mas vai passando lá, podes ter a sorte de encontrar alguém conhecido e saberes alguma informação.- insistia a minha mãe.
Não entendia aquilo de ir directo para o Grafanil, o secretismo da chegada de militares, e porque chegavam os militares. Sabia que o Grafanil era um quartel nos arredores de Luanda.
Deixei de perguntar. Calei aquela vozinha de insistente matraca, que caracterizava os meus 9 anos, pois sentia que entrava em espaços vedados à minha compreensão.

Vários dias passaram até que tocaram à campainha. Era o mancebo Abel, rapaz bonito de olhos claros, fardado de verde, e que afivelava um grande e simpático sorriso.
Ficamos a saber que pertencia aos comandos e que ficaria por Luanda, com saídas regulares em missões provavelmente perigosas. Passou a ser nossa companhia de alguns domingos, sempre que podia sair do quartel.
Muitas vezes, acompanhava-nos à praia da Corimba nos domingos de manhã.
O meu pai vestia calções, camisa balalaica, punha óculos escuros e rumávamos pela estrada da Corimba em direcção à praia; sentava-se à sombra, à beira de uma pequena esplanada, ou por baixo de um coqueiro e lia as novidades do jornal acabadinho de comprar,”A Província de Angola”.
Eu, Henrique, um ano mais velho, e Abel, deliciavamo-nos com banhos numa água morna e tropical, sem ondulação, serena como uma piscina natural, que nos envolvia mansamente os corpos e nos tornava felizes. Henrique esquecia as más notas do liceu, eu esquecia os trabalhos de casa e Abel esquecia o matraquear das metralhadoras, a fome e a sede que emergiam das missões especiais, assimilando melhor a vertigem do perigo que corria, cada vez que saía de Luanda. Granadas e minas dissolviam-se nas águas da Corimba, as interrogações e a justiça dessa guerra, certamente também. Essas manhãs na praia tinham a qualidade de lavar as nossas almas e apaziguar as nossas conciências.
Fazíamos mergulhos, brincávamos os três como crianças que só dois éramos. Corríamos da areia para a água, da água para a areia, chapões, mergulhos, cambalhotas e corríamos uns atrás dos outros. Boiavamos para descansar e para apreciar aquele céu azul, receber os raios tórridos de sol, e percebermos a dimensão do universo ….
Naquele tempo não havia braçadeiras, coletes e outras coisas da era moderna…. Era câmara-de ar-preta que fazia o mesmo efeito, flutuar. Partilhávamos uma grande bóia feita de câmara-de-ar de pneu, que dava lugar a imensas brincadeiras e arrelias com o travesso Henrique, que se aproveitava da sua superioridade física para me cacimbar o juízo. Abel fazia o papel de apaziguador, com a paciência que sempre o caracterizou, anulava as novas diferenças, protegendo-me sempre das brincadeiras de Henrique.
O meu pai olhava à distância talvez decepcionado por não entrar na diversão e continuava a ler o jornal.
A brincadeira que ele perdia!
Regressávamos na carroçaria de uma datsun que nos levava a um saboroso almoço, preparado em casa. A minha mãe sabia agradar: Bifes com puré, feijoada, cozido à portuguesa….

Passavam-se dias que o Abel não aparecia.
Os helicópteros aterravam de emergência no hospital militar, ora isolados, ora em grupo de três ou quatro, perfilando-se no vôo sobre Luanda e aterrando um a um, misturando o sibilar dos motores e hélices com o levantar do pó vermelho.
A minha mãe ficava silenciosa, espelhando a preocupação que lhe invadia alma, lançando o olhar demorado sobre aquela área da cidade. O barulho inconfundivel dos helicópteros sobressaltavam o coração da minha mãe, que não sossegava enquanto este primo protegido não aparecia de novo. Não confessava os seus medos, não partilhava a sua ansiedade, não dividia a angústia da guerra colonial personificada pelo primo Abel.
Abel também não, mas lia-se-lhes como um alfabeto soletrado na menina dos olhos.
(...)
Anabela Quelhas
Mestre das artes do ferro e do fogo.
(Abel Carvalho)

2 comentários:

.:Isabele:. disse...

Anabela, se sua mãe era prima de meus tios Abel e Natalina e de meu pai Humberto, então somos primas em segundo grau? Um beijo!

anabelaquelhas disse...

Terceiro grau, sim