sexta-feira, 18 de junho de 2010

Um livro INTERROMPIDO


Morreu José Saramago.
Este ponto final, parágrafo de fim de vida, recordou-me outro ponto finalíssimo de há 18 anos atrás.
.......
Um dia descobri que o meu pai também lia Saramago.
Depois das refeições, esticava-se no sofá, descia os óculos, pousados transitoriamente na bonita calvice, e encaixava-os sobre o nariz para iniciar os momentos da leitura.
Por vezes adormecia serenamente, por breves instantes, ampliando e enriquecendo a leitura noutras dimensões, e despertava, ainda na mesma página seleccionada, retomando a leitura sem qualquer sobressalto..
Quando tinha disponibilidade para o ouvir, contava-me sobre o que lia, especialmente se eu ainda não tinha lido a obra em causa.
Aconteceu com o "Evangelho segundo Jesus Cristo" de José Saramago. Criaram-se diversos momentos de análise e de partilha da obra, que tanta polémica causou nessa época, servindo de ponto de partida para outros contextos, para vivências diversas.
Numa manhã de 2ª feira, o meu pai surpreendeu-se, com a estática definitiva do seu coração.
Surpresa partilhada por todos:
Impossível de prever.
O livro ficou a meio.
Fiz questão em herdar aquele livro e traze-lo para casa.
Não sei em que página foi interrompida a sua leitura, porque nunca abri o livro, mas sei que ficou marcado com uma folha de papel, que continua lá.
Não, nunca abri o livro.
O livro vive junto de muitos outros, numa das minhas estantes.
Olho para ele muitas vezes, e olho por ele... limpo-lhe o pó, alinho-o, ou organizo a sua localização, mediante os livros vizinhos. Passo os olhos pela lombada e proporciono-me a viagens relâmpago ao passado.
Nunca quis abri-lo, nem nunca quis lê-lo.
Nem esse, nem outro exemplar da mesma obra, porque para mim só faz sentido, aquele livro, assim mesmo:interrompido e fechado.



Jacinto Quelhas (1919 - 1992)
Fotografia de 1970

2 comentários:

Anónimo disse...

Escreves de forma comovente.

Anónimo disse...

Sublime!