… quase a cairmos para
o Oceano Atlântico
A história da liberdade ainda está por fazer e ela desmultiplicar-se-á
por imensos relatos na 1ª pessoa, das vivências de cada um, criando uma imensa manta
de retalhos que ganhará cada vez mais cor, diversidade e coerência. Sobre a
descolonização há histórias de despedidas, duma viagem chamada ponte aérea e de
outros viagens inacreditáveis, de um país para muitos desconhecido, da
permanência em Lisboa em pensões e hotéis, da retirada para o Portugal rural e
atrasado e do encontro de famílias, do desespero do recomeçar e até de outros
rumos que alguns tomaram. São histórias sofridas e profundamente marcantes na
cronologia de cada um.
….
É
uma casa de várias janelas, de várias varandas, de vários telhados, de várias portas
de entrada, feita de outras casas e com passadiço sobre a rua, situação única
na aldeia. Casa virada para duas ruas, de planta recortada, escondendo
possibilidade de alojamento nunca antes imaginadas. É uma casa de vários chãos.
Hoje
é uma casa solitária e abandonada por muitos donos…. Talvez devoluta, seja a
palavra certa para caracterizar esta casa de fim de rua e cruzamento de outra -
casa com tanta história para contar, atualmente em coma profundo arrastando consigo
as minhas memórias e as de outros que chegaram a uma aldeia rural para
recomeçar a vida. Um coma de adormecimento quase letal, esconde imagens,
pessoas, vivências aglutinadas entre paredes de granito e madeiras seculares,
hoje arruinadas, expostas aos agentes atmosféricos e a outros pequenos
invasores, tão inofensivos e tão letais. Esta é uma casa de ilustração de
muitas histórias que ainda não foram narradas do pós-abril, nos anos agitados
que se seguiram à revolução, quando Portugal rebentava pelas costuras com meio
milhão de retornados e refugiados das ex-colónias.
Esta
casa conhecida por casa dos Guerra e ou por casa dos Fontes, uma mistura que a
genealogia se encarrega de explicar em detalhe, localizada no Portugal profundo
e numa esquina qualquer de Trás-os-Montes, era o lar de 2 mulheres idosas e
solteironas, que se habituaram a viver da ruralidade e na ruralidade dos anos
50 e 60, sem sobressaltos, temperada com
pitadas de algumas novidades da modernidade. Esta
modernidade centrava-se essencialmente num grande rádio que nunca vi utilizarem,
mas que compunha com dignidade uma grande prateleira, uma instalação sanitária
completa com loiças negras e uma televisão, que era o motivo de orgulho destas
irmãs. Não se importavam de partilhar o serão com vizinhos, pois tal objecto
naquela época, rompia definitivamente com a solidão destas sexagenárias e
abria-lhes uma janela para um mundo que não se vislumbrava das muitas janelas
desta casa de final de rua. Este cenário era reforçado com uma grande varanda
fechada com caixilharia de ferro, embrião das célebres marquises citadinas,
onde existiam uns cadeirões de verga, e uma salamandra a lenha, permitindo
algum conforto nas noites televisivas.
As
irmãs viviam de uma agricultura de subsistência, rentabilizando o leite de duas
ou três vacas turinas e viveram alguns anos sem sobressaltos, entre o respeito
silencioso às conversas em família do senhor presidente do concelho, proferidas
na televisão e as sonoras gargalhadas
provocadas pelo o humor de Raúl Solnado,
cumprindo os seus deveres de católicas praticantes da santa madre igreja. Um
dia seguia-se a outro, num ramerame
que parecia eterno, pontuados pelas missas de domingo, naquela homogeneidade monocromática
das rotinas rurais, entre solstícios e equinócios quase sempre iguais e pelas
noites de tourada, onde os ânimos aqueciam, sempre divididos entre, “o coitado
do toiro” e “o coitado do forcado”.
A
vida parecia correr nesta mansidão lenta e vagarosa, até à hora que a morte as
levasse para o céu. Mas um dia a revolução chegou e adicionou à vida destas
mulheres, a ansiedade e a preocupação pelas
famílias que estavam nas ex-colónias, que já não viam há muitos anos, apesar de
irmãos, cunhadas, sobrinhas e até um filho, pertencerem a estes familiares
distantes e agora desprotegidos pela sorte, pelo destino, por Deus e pelo
Portugal democrático .
As noticias da televisão…
……as cartas que chegavam no
correio,
-----
o testemunho dos que vinham de férias e dos que regressavam em definitivo…..
Os
dias deixaram ser longos e doptados de fáceis rotinas e as muitas horas,
converteram-se em tempo que passa rápido no relógio.
Esta
casa feita de muitas casas, dos Guerra e ou dos Fontes como quiserem
identificar, com maçadoiro anexo, e aradeira na parede, encheu-se de repente
com pessoas distribuídas por 4 gerações. A densidade populacional dentro destas
paredes, colapsou. Colapsou no sentido de esgotar, de rebentar, de não caber
mais. As duas senhoras idosas viram a sua casa de família a dar abrigo a mais
17 pessoas. As suas solidões pasmadas e serenas foram substituídas pelo
encontro em pouco espaço de necessidades diferentes de cada um, e por tudo o
que isso provocava: barulho, stress, falta de privacidade, falta de paciência,
falta de móveis, falta de comida, falta de caminhos alternativos…
Os
quartos sobrelotaram, desdobraram-se as camas. A cozinha tinha 3 ou 4 fogões. As
refeições serviam-se por turnas, pois não cabiam todos à mesa. A grande varanda
tipo marquise passou a ser pequena e sitio de polémica na escolha do canal a
ver, só havia dois, mas havia 2! e da cadeira mais confortável e melhor
posicionada para ver televisão. Comprovou-se aqui neste espaço, como é vulgar,
a relatividade; como o definitivo nem sempre o é, como o efémero se associa ao
provisório. A vida das pessoas dá reviravoltas impensáveis. Tudo o que era
rotineiro e monótono desaguou num rio de movimentos e de imprevisibilidades.
As
idas ao quarto de banho, não sei como se organizavam. Uns fumavam outros não.
Uns eram velhos, outros eram crianças e vários nem uma coisa, nem outra. Uns
gostariam de nabo na sopa, outros abominariam nabo e outros nem sequer comeriam
a sopa. Refeições para 19, 19 pratos e 38 talheres para servir e para lavar,
pão proporcional a 19, bacias para lavar roupa de 19, cobertores e lençóis para
19. !9 cumprimentos pela manhã, 19 despedidas no final da noite. Alguns nunca
tinham vindo a Portugal, muito menos a Trás-os-Montes, nunca tinham sentido o
rigor do inverno, nem o inferno do verão. Uns gostavam de isto, outros gostavam
daquilo, uns dormiam tarde, outros dormiam cedo… As duas senhoras de provecta
idade nunca tinham sentido tamanha barafunda dentro de portas e nas suas vidas.
Penso que deixou de haver paciência para fazer crochet, deixou de haver tolerância para jogar à sueca, deixou de haver vizinhos a ver a televisão,
deixou haver a reza do terço no mês de Maio, deixou de haver …. E passou a
haver várias pessoas a falar ao mesmo tempo, passou a haver um cruzar de
vivências, passou a haver tolerância, respeito e revolta, nos conflitos… sim
porque em todo lado há conflitos... passou a haver 19 escovas de dentes no
lavatório do quarto de banho.
Foi
assim no verão de 1975. Um Portugal a rebentar pelas costuras, de lotação
esgotada, quase a cairmos para o oceano atlântico. Foi esta capacidade inesgotável
de acolher, que tornou possível a integração de meio milhão de pessoas, foi
isto que nos distinguiu de outros países com problemáticas semelhantes.
Os
apoios do tal IARN eram reduzidos, apenas me lembra dos cobertores, de alguns
litros de leite e uns queijos enlatados…. Valeu a vaca, valeu a horta, valeu o
amor e amizade, valeu a capacidade e a vontade de partilhar.
Os
mais novos e mais capazes rapidamente tomaram outros rumos, os mais velhos
permaneceram nesta casa feita de muitas casas, até morrer, devolvendo-se
progressivamente a outras solidões. Viram cada um partir na sua vez na
esperança e na resiliência da construção de uma nova vida e viram a
incapacidade de outros, convertida em permanência por falta de alternativas,
porque já eram velhos demais.
Hoje esta casa está só, porque
todos partiram e as memórias desagregam-se como as folhas caducas do outono,
que vão entrando pelas vidraças partidas.
In Ensaios de escrita, um
projecto sempre adiado - Anabela Quelhas
Anabela Quelhas (aprendente e
anotadora de espaços)
(sem acordo ortográfico)
Sem comentários:
Enviar um comentário