terça-feira, 1 de julho de 2014

… quase a cairmos para o Oceano Atlântico


… quase a cairmos para o Oceano Atlântico

A história da liberdade ainda está por fazer e ela desmultiplicar-se-á por imensos relatos na 1ª pessoa, das vivências de cada um, criando uma imensa manta de retalhos que ganhará cada vez mais cor, diversidade e coerência. Sobre a descolonização há histórias de despedidas, duma viagem chamada ponte aérea e de outros viagens inacreditáveis, de um país para muitos desconhecido, da permanência em Lisboa em pensões e hotéis, da retirada para o Portugal rural e atrasado e do encontro de famílias, do desespero do recomeçar e até de outros rumos que alguns tomaram. São histórias sofridas e profundamente marcantes na cronologia de cada um.

….

                É uma casa de várias janelas, de várias varandas, de vários telhados, de várias portas de entrada, feita de outras casas e com passadiço sobre a rua, situação única na aldeia. Casa virada para duas ruas, de planta recortada, escondendo possibilidade de alojamento nunca antes imaginadas. É uma casa de vários chãos.

                Hoje é uma casa solitária e abandonada por muitos donos…. Talvez devoluta, seja a palavra certa para caracterizar esta casa de fim de rua e cruzamento de outra - casa com tanta história para contar, atualmente em coma profundo arrastando consigo as minhas memórias e as de outros que chegaram a uma aldeia rural para recomeçar a vida. Um coma de adormecimento quase letal, esconde imagens, pessoas, vivências aglutinadas entre paredes de granito e madeiras seculares, hoje arruinadas, expostas aos agentes atmosféricos e a outros pequenos invasores, tão inofensivos e tão letais. Esta é uma casa de ilustração de muitas histórias que ainda não foram narradas do pós-abril, nos anos agitados que se seguiram à revolução, quando Portugal rebentava pelas costuras com meio milhão de retornados e refugiados das ex-colónias.   

                Esta casa conhecida por casa dos Guerra e ou por casa dos Fontes, uma mistura que a genealogia se encarrega de explicar em detalhe, localizada no Portugal profundo e numa esquina qualquer de Trás-os-Montes, era o lar de 2 mulheres idosas e solteironas, que se habituaram a viver da ruralidade e na ruralidade dos anos 50 e 60, sem sobressaltos,  temperada com  pitadas de  algumas novidades da modernidade. Esta modernidade centrava-se essencialmente num grande rádio que nunca vi utilizarem, mas que compunha com dignidade uma grande prateleira, uma instalação sanitária completa com loiças negras e uma televisão, que era o motivo de orgulho destas irmãs. Não se importavam de partilhar o serão com vizinhos, pois tal objecto naquela época, rompia definitivamente com a solidão destas sexagenárias e abria-lhes uma janela para um mundo que não se vislumbrava das muitas janelas desta casa de final de rua. Este cenário era reforçado com uma grande varanda fechada com caixilharia de ferro, embrião das célebres marquises citadinas, onde existiam uns cadeirões de verga, e uma salamandra a lenha, permitindo algum conforto nas noites televisivas.

                As irmãs viviam de uma agricultura de subsistência, rentabilizando o leite de duas ou três vacas turinas e viveram alguns anos sem sobressaltos, entre o respeito silencioso às conversas em família do senhor presidente do concelho, proferidas na televisão e as  sonoras gargalhadas provocadas pelo o humor de  Raúl Solnado, cumprindo os seus deveres de católicas praticantes da santa madre igreja. Um dia seguia-se a outro, num ramerame que parecia eterno, pontuados pelas missas de domingo, naquela homogeneidade monocromática das rotinas rurais, entre solstícios e equinócios quase sempre iguais e pelas noites de tourada, onde os ânimos aqueciam, sempre divididos entre, “o coitado do toiro” e “o coitado do forcado”.

                A vida parecia correr nesta mansidão lenta e vagarosa, até à hora que a morte as levasse para o céu. Mas um dia a revolução chegou e adicionou à vida destas mulheres,  a ansiedade e a preocupação pelas famílias que estavam nas ex-colónias, que já não viam há muitos anos, apesar de irmãos, cunhadas, sobrinhas e até um filho, pertencerem a estes familiares distantes e agora desprotegidos pela sorte, pelo destino, por Deus e pelo Portugal democrático .

 As noticias da televisão…

……as cartas que chegavam no correio,

                ----- o testemunho dos que vinham de férias e dos que regressavam em definitivo…..

                Os dias deixaram ser longos e doptados de fáceis rotinas e as muitas horas, converteram-se em tempo que passa rápido no relógio.

                Esta casa feita de muitas casas, dos Guerra e ou dos Fontes como quiserem identificar, com maçadoiro anexo, e aradeira na parede, encheu-se de repente com pessoas distribuídas por 4 gerações. A densidade populacional dentro destas paredes, colapsou. Colapsou no sentido de esgotar, de rebentar, de não caber mais. As duas senhoras idosas viram a sua casa de família a dar abrigo a mais 17 pessoas. As suas solidões pasmadas e serenas foram substituídas pelo encontro em pouco espaço de necessidades diferentes de cada um, e por tudo o que isso provocava: barulho, stress, falta de privacidade, falta de paciência, falta de móveis, falta de comida, falta de caminhos alternativos…

                Os quartos sobrelotaram, desdobraram-se as camas. A cozinha tinha 3 ou 4 fogões. As refeições serviam-se por turnas, pois não cabiam todos à mesa. A grande varanda tipo marquise passou a ser pequena e sitio de polémica na escolha do canal a ver, só havia dois, mas havia 2! e da cadeira mais confortável e melhor posicionada para ver televisão. Comprovou-se aqui neste espaço, como é vulgar, a relatividade; como o definitivo nem sempre o é, como o efémero se associa ao provisório. A vida das pessoas dá reviravoltas impensáveis. Tudo o que era rotineiro e monótono desaguou num rio de movimentos e de imprevisibilidades.

                As idas ao quarto de banho, não sei como se organizavam. Uns fumavam outros não. Uns eram velhos, outros eram crianças e vários nem uma coisa, nem outra. Uns gostariam de nabo na sopa, outros abominariam nabo e outros nem sequer comeriam a sopa. Refeições para 19, 19 pratos e 38 talheres para servir e para lavar, pão proporcional a 19, bacias para lavar roupa de 19, cobertores e lençóis para 19. !9 cumprimentos pela manhã, 19 despedidas no final da noite. Alguns nunca tinham vindo a Portugal, muito menos a Trás-os-Montes, nunca tinham sentido o rigor do inverno, nem o inferno do verão. Uns gostavam de isto, outros gostavam daquilo, uns dormiam tarde, outros dormiam cedo… As duas senhoras de provecta idade nunca tinham sentido tamanha barafunda dentro de portas e nas suas vidas. Penso que deixou de haver paciência para fazer crochet, deixou de haver tolerância para jogar à sueca,  deixou de haver vizinhos a ver a televisão, deixou haver a reza do terço no mês de Maio, deixou de haver …. E passou a haver várias pessoas a falar ao mesmo tempo, passou a haver um cruzar de vivências, passou a haver tolerância, respeito e revolta, nos conflitos… sim porque em todo lado há conflitos... passou a haver 19 escovas de dentes no lavatório do quarto de banho.

                Foi assim no verão de 1975. Um Portugal a rebentar pelas costuras, de lotação esgotada, quase a cairmos para o oceano atlântico. Foi esta capacidade inesgotável de acolher, que tornou possível a integração de meio milhão de pessoas, foi isto que nos distinguiu de outros países com problemáticas semelhantes.

                Os apoios do tal IARN eram reduzidos, apenas me lembra dos cobertores, de alguns litros de leite e uns queijos enlatados…. Valeu a vaca, valeu a horta, valeu o amor e amizade, valeu a capacidade e a vontade de partilhar.

                Os mais novos e mais capazes rapidamente tomaram outros rumos, os mais velhos permaneceram nesta casa feita de muitas casas, até morrer, devolvendo-se progressivamente a outras solidões. Viram cada um partir na sua vez na esperança e na resiliência da construção de uma nova vida e viram a incapacidade de outros, convertida em permanência por falta de alternativas, porque já eram velhos demais.

Hoje esta casa está só, porque todos partiram e as memórias desagregam-se como as folhas caducas do outono, que vão entrando pelas vidraças partidas.

In Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado - Anabela Quelhas

 
Anabela Quelhas (aprendente e anotadora de espaços)
(sem acordo ortográfico)

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