OS DIVERSOS SÍTIOS
ENCONTRAVAM-SE NESTE SÍTIO
Em qualquer hora que passe pelo largo de S. Pedro, encontro-o quase sempre
vazio - vazio de pessoas, vazio de tarefas, vazio de vivências.
É um dos casos em
que a renovação do desenho urbano não resultou, sendo urgente repensá-la. Nem tudo
o que se estuda de forma racional e de régua e esquadro, tem sucesso.
Apresento-vos um buraco negro na renovação da cidade de Vila Real. Parecia que
iria dar certo, mas não deu.
Há uns anos, tínhamos
um caos humanamente saudável, transformado num ponto nevrálgico da cidade,
feito de imensas realidades que tentavam coexistir em simultâneo. Pessoas e
automóveis misturavam-se a diversas horas do dia, com uma vitalidade própria
das cidades que mexem. Foi assim durante muitos e muitos anos. Os automóveis,
as entradas e saídas do culto religioso da igreja de S. Pedro, a passagem de
crianças idas e vindas do infantário de S. Pedro e do colégio S. José, os
aldeões que chegavam à cidade para comprar e vender produtos, as sementes, as
couves para semear e as galinhas com pintainhos, a camioneta que custava a
passar entre os peões e expelia uma fumarada brutal, as mulheres que carregavam
a cesta à cabeça com arrecadas nas orelhas, os homens de varapau ou bengala que
carregavam samarras de domingo, os negócios que se faziam em poucos minutos,
enquanto não passava a “carreira” ou o “carro de praça”… as discussões entre os
taxistas disputando clientes, os convites para ir beber um copo ao Pimentel e
fazer uma boquinha com uma patanisca de bacalhau… realidades e vivências que vestiram
esta praça e áreas adjacentes. De vez em quando, os bombeiros a querer sair com
o carro, do lado mais nascente do espaço, tendo a saída bloqueada por toda
aquela confusão, largavam a sirene para sobressaltar toda a gente.
O largo de S.
Pedro era um espaço urbano desorganizado e sujo, que servia de ponto de
encontro entre pessoas, oriundas de diversos sítios. Os diversos sítios encontravam-se neste sítio. Era um espaço urbano
com vida, vivido a várias velocidades, que se traduziam em sons variados, numa
paleta urbana muito rica e característica. Era ali que se fazia a articulação
entre a cidade e o campo. Zona de charneira entre realidades distintas e
simultaneamente muito próximas (aglomerados populacionais localizados na
periferia de Vila Real num raio de 20km), tendo como cenário de fundo, a cidade
transmontana capital do distrito. Os de Sanguinhedo vinham à cidade e
encontravam-se aqui com os que vinham da Samardã. Os de Fornelos perguntavam
pelas uvas aos de Parada do Pinhão. Os de Justes faziam os possíveis por ignorar
ostensivamente os de Lamares. Os da Bouça combinavam a ida à festa da Sra da
Pena com os de Fortunho e os de Vale de Nogueiras compravam os panelos aos de
Bisalhães. Os cães vadios passavam e mijavam na base das árvores, felizes por
toda aquela animação, abanando o rabo e cheirando cada pormenor deste festival
de odores… uma festa aqui, uma comida acoli.
Havia pouco onde sentar… Era um quadro que tinha tanto de surreal, como de
genial e que permanece certamente na memória colectiva.
Este era o local
que mais negócios testemunhou entre fulanos,
cicranos e beltranos. Um coração
urbano, com um bom ritmo cardíaco, bem ginasticado com excessos, acordos e
desacordos… mulheres havia que aqui chegavam de poupo na cabeça e saiam de
permanente perfumada. Não havia multibanco, o dinheiro aparecia no meio das mãos,
notas de escudos e réis, puxadas do bolso das calças ou das carteiras,
resultante por vezes da venda de uma junta de bois, na feira do Sto António.
Vendiam-se tremoços aos miúdos que choramingavam já cansados de um dia inteiro
na Bila, com os sapatos a apertar. Vendiam-se flores pelos Santos. Anunciavam-se
os figos, as tangerinas, as cerejas e as castanhas. Passava sempre um cego de
Vale d’ Agodim a pedir esmola. Atirava-se lixo para o chão, pois cascas de
tangerina e cascas de amendoins sempre foram biodegradáveis.
Logicamente
emergiam diversos problemas, como sempre acontece no caos. Tentou-se organizar
o espaço urbano, corrigir erros, redefinir traçados de arruamentos, dividir o
espaço de permanência de peões, do espaço de circulação automóvel, beneficiando
largamente a área para a permanência dos cidadãos pedestres, melhorar pisos e requalificar
espaços. Reordenou-se a circulação, condicionou-se o trânsito, retiraram-se os
táxis e as camionetas, renovou-se a vedação. As árvores permaneceram, a igreja
de Nasoni também, os espaços construídos, idem. Localizaram-se bancos exteriores
e duas esculturas de significado inexpressivo. Tudo muito saudável, tudo muito clean!!!!!!
Parecia que seria melhor para todos, não parecia? Parecia ser esse o
caminho natural para a resolução de problemas, parecia que iriamos dar um passo
civilizacional…
Os aviões
costumam desaparecer nos buracos negros… A praça de S. Pedro converteu-se num
buraco negro, pois toda esta palpitação urbana, emigrou para uma outra
dimensão, sumiu-se, finou-se completamente. Resta uma praça quase deserta
infestada em certos momentos pelos ratos voadores mais conhecidos por pombas,
mais os carros estacionados em filinha na via de acesso condicionado. Os bancos
existem, mas estão vazios. Os comerciantes viram os seus negócios a tornarem-se
moribundos. O cego mudou de sítio ou aposentou-se (sei lá bem!!!), o puto
ranhoso já não quer saber dos tremoços, agora prefere um tablet, a chiclete e
calça sapatilhas nike, o Pimentel
deixou de ser um tasco e a cidade vai-se esvaziando.
Temos bancos
modernos, temos duas esculturas amorfas modernaças, temos uma universidade
sénior, temos imensa sombra pelo verão, temos tudo limpo de sujeira e de
pessoas, temos os bombeiros sem barreiras e falta-nos tudo o resto que conferia
a esta cidade uma poderosa identidade.
Publicado em NVR em 16/06/2015
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