quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

o polvo


 

Em Trás-os- Montes, durante o Natal, o polvo disputa com o bacalahau, o principal lugar na mesa.

            «Há duas explicações para este microfenómeno natalício: a nobreza do alimento e a proximidade à fronteira», diz Albertino Gonçalves, professor de Sociologia na Universidade do Minho e especialista em cultura luso-galaica. «O polvo é um produto de alta qualidade e sempre esteve reservado para ocasiões especiais.»

            A tradição do polvo deve-se à nossa proximidade à Galiza, até porque os galegos consideram o rio  Douro é a sua fronteira a Sul.

             final dos anos trinta, depois da Guerra Civil Espanhola, o Estado Novo (regime de Salazar) quis ordenar o abastecimento alimentar do país para travar a fome. O polvo não entrava no menu do regime.

            «Salazar definiu zonas e produtos: cereais no Alentejo, sardinha nos portos pesqueiros, hortícolas e frutícolas no Oeste. E investiu seriamente na frota bacalhoeira, capaz de trazer das águas frias do Norte um ingrediente barato e altamente duradouro», «Nessas contas, o polvo, que vinha essencialmente de Espanha, não tinha lugar.»

            O bacalhau traduz assim o resultado de uma vontade politica, que não é acatada pelas populações fronteiriças, contrariando o menu do fascismo e praticando o contrabando do polvo, muito controlado pela PIDE.

            A proximidade da Galiza, principal centro mundial da pesca de polvo, fazia com que que ele estivesse presente no território nacional, há séculos e entrásse na dieta das gentes da fronteira,  muito antes do bacalhau, assim como em Trás--os-Montes integrando a identidade dos transmontanos.

            O polvo chegava seco em barricas e pendurava-se atrás da porta. Dois dias antes do Natal juntava-se o mulherio nas fontes e mergulhavam-no na água. Depois, era agarrá-lo pela cabeça e batê-lo numa pedra, pelo menos cinquenta vezes, para quebrar os seus filamentos fibrosos que endurecem ao cozer. A congelação permitiu quebrar os tendões do polvo sem esforço, mas antigamente era preciso fazê-lo à força dos braços das mulheres. As mulheres mais idosos de Justes certamente confirmarão.

            Era na mesa de Natal que o polvo se tornava povo. Naqueles tentáculos estava a sua identidade e a sua resistência.

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