terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A Farrapada


A Farrapada

                O adeus à carne não se chamava Carnaval, mas sim Entrudo, porque na verdade significava a entrada na quaresma, aqui no Portugal de Trás-os-Montes, esquecido e afogado no mar de pedras também da serra do Palão… mistura entre o sagrado e o profano, iluminada por séculos de agradecimento à mãe natureza, enigmática, cíclica e pontual, e condicionada pelos rituais religiosos de temor a Deus, que oscilam entre o castigo e a dádiva.

                As origens que se atribuem a esta festa popular, perdem-se no tempo, mas aquela com que mais simpatizo e se articula melhor com o que vou recordar, será a de origem grega, apenas porque se honra Dionísio, deus do vinho, entidade que descobriu que o líquido extraído da uva, para além de ter um óptimo sabor, dá alegria imensa a quem o prova.

                A aldeia de Justes já teve um Entrudo a sério, castiço e original, profano e irreverente- pelo menos diferente de todos os que conheço.

                A “farrapada do Albano Tendeiro” saia à rua no dia do Entrudo, terça-feira de Carnaval. Era assim que se designava o grande grupo de mascarados, que saiam à rua assustando os mais pequenos e passando por diversas casas, solicitando/exigindo vinho, enchidos ou dinheiro. Muito vinho.

                A despedida da carne, ritual pagão, absorvido pelo cristianismo, ou o que se quiser chamar, em Justes manifestou-se durante muitos anos, de uma forma rural, quase primitiva e naife. Não era um grupo agressivo, mas as crianças mais pequenas assustavam-se com a invulgaridade com que se apresentavam – andrajosos, irreconhecíveis e perturbadores – diferentes de tudo que viam durante o ano, numa aldeia de gente trabalhadora e sossegada.

                Este grupo era presidido pelo estimado Albano Tendeiro, homem bem-disposto e temente a Deus. Fora do Entrudo e nos seus tempos que restavam da lavoura árdua e quase desumana, desempenhava funções de sacristão da igreja de Justes, assegurando grande parte do serviço religioso aos fiéis devotos da igreja.

                No dia do Entrudo, terça-feira gorda, Albano, divertia-se à grande e fazia divertir. Depois das tarefas caseiras estarem cumpridas, juntava os foliões numa das lojas da sua casa, localizada na Eira, ao lado dos porcos e das duas vacas que arrastavam o arado para rasgar a terra. Recolhiam a fuligem depositada na base das sertãs (frigideiras) ou de outros recipientes que iam ao lume (fogueira), e pintavam os rostos e pescoços com essa graxa negra, carbonada e opaca - mistura de carbono e gordura. Apostavam de seguida no contraste com o branco dos olhos e dos dentes, sendo estes últimos reforçados em tamanho com pedaços de cebola.

                O resultado era bizarro, estranho, assustador e supostamente pouco saboroso.

                O resto da fantasia era composta por tudo que fosse possível vestir, vestidos e calças velhas, lençóis ou cortinas em desuso, chapéus, paus, mocas ou bengalas, e muito especialmente guarda-chuvas estragados, de varetas torcidas e tecido esfarrapado, formando uma autêntica farrapada sem nexo, tangenciando o surreal, o tétrico e o terror, só comparado com o célebre triller de Michel Jackson, criado muitos anos depois.

                Saiam ao fim da tarde em grande grupo, já na hora do lusco-fusco e a sua passagem era anunciada por vários gritos de tonalidade UUUUUUUUUUUUUUUUhhhhhhhh, de caretos de palha que os antecediam ou outros aldeãos que os seguiam divertidos.

                A farrapada parava a cada porta de adega e o vinho servia-se em exagero, em copo, em púcaro, no almude ou diretamente da pipa. Bebiam fazendo renascer Dionísio, simbolizando a ressurreição da natureza e a fertilidade da terra. Homens toscos, de calos nas mãos, sofridos de trabalho de sol a sol, nunca conheceram Dionísio, nem sonhavam sequer que o seu conhecimento ascentral se mantinha intacto no seu código genético, aflorando no Entrudo.

                Era uma folia reservada apenas ao sexo masculino. As mulheres e as crianças, permaneciam em casa resguardando-se de previsíveis usos e abusos, provocados pelo estado etílico de quase todos.

                Bebiam, bebiam cada vez mais pela noite que escurecia as ruas, numa orgia farrapal e andrajosa, até a euforia atingir o seu auge, no enterro do Entrudo. Percorria todas as ruas da aldeia, acompanhado de alguma encenação critica, que satirizava publicamente situações que durante o ano andaram na boca do povo. Finalmente, após leitura do testamento, queimava-se um boneco que representava o entrudo, que tinha a característica de ser bem apetrechado ao nível do sexo e redondezas, e onde todos simulavam o choro e os gritos, carpindo a despedida do inverno.

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