A Farrapada
O adeus à
carne não se chamava Carnaval, mas sim Entrudo, porque na verdade significava a
entrada na quaresma, aqui no Portugal de Trás-os-Montes, esquecido e afogado no
mar de pedras também da serra do Palão… mistura entre o sagrado e o profano,
iluminada por séculos de agradecimento à mãe natureza, enigmática, cíclica e
pontual, e condicionada pelos rituais religiosos de temor a Deus, que oscilam
entre o castigo e a dádiva.
As origens que
se atribuem a esta festa popular, perdem-se no tempo, mas aquela com que mais
simpatizo e se articula melhor com o que vou recordar, será a de origem grega,
apenas porque se honra Dionísio, deus do vinho, entidade que descobriu que o líquido
extraído da uva, para além de ter um óptimo sabor, dá alegria imensa a quem o
prova.
A aldeia de Justes
já teve um Entrudo a sério, castiço e original, profano e irreverente- pelo
menos diferente de todos os que conheço.
A “farrapada
do Albano Tendeiro” saia à rua no dia do Entrudo, terça-feira de Carnaval. Era
assim que se designava o grande grupo de mascarados, que saiam à rua assustando
os mais pequenos e passando por diversas casas, solicitando/exigindo vinho,
enchidos ou dinheiro. Muito vinho.
A despedida da
carne, ritual pagão, absorvido pelo cristianismo, ou o que se quiser chamar, em
Justes manifestou-se durante muitos anos, de uma forma rural, quase primitiva e
naife. Não era um grupo agressivo,
mas as crianças mais pequenas assustavam-se com a invulgaridade com que se
apresentavam – andrajosos, irreconhecíveis e perturbadores – diferentes de tudo
que viam durante o ano, numa aldeia de gente trabalhadora e sossegada.
Este grupo era
presidido pelo estimado Albano Tendeiro, homem bem-disposto e temente a Deus. Fora
do Entrudo e nos seus tempos que restavam da lavoura árdua e quase desumana,
desempenhava funções de sacristão da igreja de Justes, assegurando grande parte
do serviço religioso aos fiéis devotos da igreja.
No dia do
Entrudo, terça-feira gorda, Albano, divertia-se à grande e fazia divertir. Depois
das tarefas caseiras estarem cumpridas, juntava os foliões numa das lojas da
sua casa, localizada na Eira, ao lado dos porcos e das duas vacas que
arrastavam o arado para rasgar a terra. Recolhiam a fuligem depositada na base
das sertãs (frigideiras) ou de outros recipientes que iam ao lume (fogueira), e
pintavam os rostos e pescoços com essa graxa negra, carbonada e opaca - mistura
de carbono e gordura. Apostavam de seguida no contraste com o branco dos olhos
e dos dentes, sendo estes últimos reforçados em tamanho com pedaços de cebola.
O resultado
era bizarro, estranho, assustador e supostamente pouco saboroso.
O resto da
fantasia era composta por tudo que fosse possível vestir, vestidos e calças
velhas, lençóis ou cortinas em desuso, chapéus, paus, mocas ou bengalas, e
muito especialmente guarda-chuvas estragados, de varetas torcidas e tecido
esfarrapado, formando uma autêntica farrapada sem nexo, tangenciando o surreal,
o tétrico e o terror, só comparado com o célebre triller de Michel Jackson,
criado muitos anos depois.
Saiam ao fim
da tarde em grande grupo, já na hora do lusco-fusco e a sua passagem era
anunciada por vários gritos de tonalidade UUUUUUUUUUUUUUUUhhhhhhhh, de caretos
de palha que os antecediam ou outros aldeãos que os seguiam divertidos.
A farrapada
parava a cada porta de adega e o vinho servia-se em exagero, em copo, em púcaro,
no almude ou diretamente da pipa. Bebiam fazendo renascer Dionísio,
simbolizando a ressurreição da natureza e a fertilidade da terra. Homens
toscos, de calos nas mãos, sofridos de trabalho de sol a sol, nunca conheceram
Dionísio, nem sonhavam sequer que o seu conhecimento ascentral se mantinha
intacto no seu código genético, aflorando no Entrudo.
Era uma folia
reservada apenas ao sexo masculino. As mulheres e as crianças, permaneciam em
casa resguardando-se de previsíveis usos e abusos, provocados pelo estado
etílico de quase todos.
Bebiam, bebiam
cada vez mais pela noite que escurecia as ruas, numa orgia farrapal e
andrajosa, até a euforia atingir o seu auge, no enterro do Entrudo. Percorria
todas as ruas da aldeia, acompanhado de alguma encenação critica, que
satirizava publicamente situações que durante o ano andaram na boca do povo.
Finalmente, após leitura do testamento, queimava-se um boneco que representava
o entrudo, que tinha a característica de ser bem apetrechado ao nível do sexo e
redondezas, e onde todos simulavam o choro e os gritos, carpindo a despedida do
inverno.
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