quarta-feira, 13 de agosto de 2014

MANUEL VIEIRA DA SILVA - o maçom


O meu bisavô, Manuel Vieira da Silva de seu nome, era maçom.

Situação oculta pela descendência, disfarçada pelos filhos e netos, redescoberta pelos bisnetos da minha geração, através de um documento sabiamente escondido num baú antigo de madeira e couro, desenhado em tachinhas amarelas e num vão falso, espaço difícil de encontrar.

Depois de abrir pequenos fechos, descobriu-se o mundo do maçom, através de um original da maçonaria do Vale do Lavradio.

 O ser maçom ou pedreiro livre foi motivo de humor, entre os bisnetos, ainda dentro daquele falso conceito associado, que ser pedreiro livre, era uma rebeldia, uma oposição feroz à igreja e ao poder instituído. Sociedades secretas são sempre o foco de atenção do nosso aventureirismo adolescente. Tudo o que é secreto desperta-nos, tudo o que é proibido atrai-nos.
PASSAPORTES
Entidade detentora
Arquivo Distrital de Vila Real
- Código de referência

PT-ADVRL-GCVR/H/D/010/1621/183
- Cota original
61
- Título
Registo de passaporte
- Datas
Vila Real, 07/02/1880
- Nível de descrição
Documento Simples
- Dimensão e suporte
160 x 220 mm.; Papel
- Âmbito e conteúdo
Requerente:
Manuel Vieira da Silva
Idade: 31 anos Lugar: Justes
Freguesia: Lamares
Concelho: Vila Real
Distrito: Vila Real
Destino: Brasil
- Localização
F. 46v

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Entidade detentora
Arquivo Distrital de Vila Real
- Código de referência
PT-ADVRL-GCVR/H/D/010/1624/249
- Cota original
177
- Título
Registo de passaporte
- Datas
Vila Real, 05/03/1883
- Nível de descrição
Documento Simples
- Dimensão e suporte
160x210 mm.; Papel
- Âmbito e conteúdo
Requerente:
Matilde Alves Ribeiro da Silva
Idade: 28 anos
Lugar: Justes
Freguesia: Lamares
Concelho: Vila Real
Distrito: Vila Real
Destino: Brasil
- Localização
F. 63
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Manuel Vieira da Silva emigrou para o Brasil, no século XIX, ainda quando o Brasil se escrevia com z.
 BRAZIL.
Emigrou com a esposa, Matilde Alves Ribeiro da Silva, num barco a vapor. Ele primeiro, ela depois. Devem ter passado dias angustiantes a atravessar o oceano, em direcção a terras de Vera Cruz, amontoados com outros iguais, desafiando a fome, as pulgas e os piolhos, rezando para não apanhar uma doença mortal que os atirasse aos peixinhos. Mais de  um mês de miséria e isolamento levados ao extremo, onde abundava a promiscuidade, o roubo e a violência. Desembarcaram são e salvos em São Sebastião do Rio de Janeiro.
Um ano mais tarde, já negociante, ingressa na maçonaria brasileira.


A TODOS OS MMAC.: ESPALHADOS SOBRE A SUPERFÍCIE DA TERRA

S.:  S.:  S.:

O GR.: CAP .: GER.: DOS RITOS AZUES NO SEIO DO GR.: OR.: DO BRAZIL AO VALE DO LAVRADIO

MANUEL VIEIRA DA SILVA COM 32 ANOS, CASADO, NEGOCIANTE, é aceite como OPERÁRIO DA AUG LOJ COMMERCIO E ARTES DO RIO DE JANEIRO NO DIA 22 DO 4º MÊS DO ANO VL 5888

(31 DE MARÇO DE 1881)

Regressa a Portugal com a mulher tuberculosa e os seus 4 filhos: Belmira, Etelvina, Daniel e Albertino. Fez outras viagens entre os dois lados do oceano. O seu corpo jaz no cemitério da sua terra natal.

Esta é uma história com história, em outras histórias, de um ilustre desconhecido, redesenhada simbolicamente, por mim em cada triângulo, em cada pirâmide, em cada olho, em cada sol, em cada coluna, através do compasso e da régua, de arquitecta que sou, sem avental, mas com determinação e equilíbrio, procurando sempre e humildemente, o conhecimento.

In Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado, Anabela Quelhas



Grupo de bombos de justes

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

MAÇADOIRO



 

 
O cultivo do linho é uma arte ascentral, que na aldeia de Justes se extinguiu nos anos 60.  
O ciclo do linho envolve várias fases, transformando a planta em peças têxteis, belas, alvas e frescas.
Numa das fases do tratamento do linho, maça-se o linho, partindo o caule, separando a parte lenhosa da fibra. Essa operação é feita sobre uma pedra, utilizando um maço.
Ao fundo da rua da Pereira, existe um maçadoiro, cuja verdadeira utilidade se perde no tempo.
Na memória colectiva recente, o maçadoiro é uma grande peça de granito assente em duas bases do mesmo material, com altura ergonómica equivalente à altura do joelho, servindo para sentar.
Sentaram-se ali muitas gentes, ao longo dos dias e das noites, especialmente nas noites de verão, servindo de espaço para sentir o fresco das noites quentes de Julho. Serviu também para repousar o cansaço por quem lá passava e encontrava interlocutor.
É uma peça essencial que marca o eixo da rua e a intersepção com a rua das fontes.
É uma pedra calada.
As gentes nascem e morrem e o maçadoiro permanece. Permanece calado, testemunho de tanta conversa sentada, de gente cansada, de gente repousada, de gente triste e alegre, de gente humilde, de gente temerosa do deus e do diabo, mas cuja função se adaptou ao tempo de cada um.
Hoje o maçadoiro é pedra calada e solitária, com um ponto vermelho do seu lado esquerdo.
AQ

Histórias que se perdem na história


Histórias que se perdem na história

Entre 1947 e 1952, 5500 crianças austríacas foram acolhidas por famílias portuguesas. Fugiam da II Guerra Mundial. Com frio, com fome e com às famílias mutiladas pela guerra, procuraram dias melhores, sítios que as acolhessem. Talvez Portugal fosse o paraíso, ausentando-as da guerra e oferecendo-lhes um espaço que poderia ser pelo menos um intervalo dessa guerra.


JUSTES também acolheu uma destas crianças, oferecendo-lhe o conforto de uma das melhores casas da aldeia, a casa do Sr Silvino e Sra D. Amélia. Mas o melhor conforto era certamente poder brincar na rua, sentirem-se protegidas por todos, poderem comer e beber sem responsabilidades de maior e terem aquilo que todas as crianças precisam: amor e carinho.


Apenas sei isto, era um menino. A identificação dessa criança, e toda a sua história ouvia-a algumas vezes em criança, mas não retive detalhes.
Partilho aqui um texto que retrata um de muitos casos, certamente semelhante ao nosso caso de Justes.
AQ

“Nunca na vida Fini Gradischnig tinha visto uma banana ou uma laranja. Nem imaginava que numa terra mais a Sul da sua, a Áustria, houvesse gente a comer sopa fria de tomate. Muito menos imaginava um país em que as crianças pudessem brincar despreocupadas um dia inteiro. Filha da II Guerra, nascida no Inverno de 1941, um dos mais rigorosos do século, sabia bem o que era passar fome ou não ter pai – o seu “foi para a Rússia e lá ficou”. É tudo o que sabe dele.

Um dia, numa aula, um professor perguntou quem queria passar umas férias fora do país, em casa de uma família, que poderia ser portuguesa, espanhola, suíça. Fini Gradischnig tomou logo a decisão. Até porque gostou muito de uma daquelas palavras: Portugal (não sabia ainda que nunca mais se separaria dela). Tinha oito anos e tratou de tudo, até dos papéis para a viagem e de conseguir a assinatura da mãe. “Era assim, éramos muito mais independentes, também fruto daquele tempo horrível.”

Como Fini, outras 5500 crianças austríacas foram acolhidas, entre 1947 e 1952, por famílias portuguesas, num programa da Cáritas. Fugiam à destruição e à miséria do pós-guerra. Em Viena, entravam num comboio com destino a Génova, em Itália, onde eram esperadas por um barco que as levaria ao destino final, Lisboa, numa viagem raramente calma, quase sempre horrível. Levavam uma mala e, ao pescoço, um cartão com o nome, um número e o apelido da família que os iria buscar no destino.

Uma viagem dura


A viagem era dura. Demoravam uma semana a chegar. Eram centenas de crianças, muito juntas. Há quem conte que veio a dormir debaixo dos bancos do comboio. Alguns ficavam doentes durante esses dias, no barco quase todos enjoavam, incluindo os funcionários da Cáritas que as acompanhavam até serem entregues às famílias, já depois de um banho que tomavam logo à chegada.

Mas Portugal seria “o paraíso”, tinham-lhes prometido. E é assim que Fini descreve o que encontrou. Depressa as casas semi-destruídas em que viviam nas grandes cidades austríacas dariam lugar a outras que lhes pareciam enormes, em aldeias ou pequenas vilas espalhadas pelo país. “Tudo era grande e bonito, de mais para mim, assustava-me um bocadinho”, contou esta austríaca(…)

terça-feira, 1 de julho de 2014

… quase a cairmos para o Oceano Atlântico


… quase a cairmos para o Oceano Atlântico

A história da liberdade ainda está por fazer e ela desmultiplicar-se-á por imensos relatos na 1ª pessoa, das vivências de cada um, criando uma imensa manta de retalhos que ganhará cada vez mais cor, diversidade e coerência. Sobre a descolonização há histórias de despedidas, duma viagem chamada ponte aérea e de outros viagens inacreditáveis, de um país para muitos desconhecido, da permanência em Lisboa em pensões e hotéis, da retirada para o Portugal rural e atrasado e do encontro de famílias, do desespero do recomeçar e até de outros rumos que alguns tomaram. São histórias sofridas e profundamente marcantes na cronologia de cada um.

….

                É uma casa de várias janelas, de várias varandas, de vários telhados, de várias portas de entrada, feita de outras casas e com passadiço sobre a rua, situação única na aldeia. Casa virada para duas ruas, de planta recortada, escondendo possibilidade de alojamento nunca antes imaginadas. É uma casa de vários chãos.

                Hoje é uma casa solitária e abandonada por muitos donos…. Talvez devoluta, seja a palavra certa para caracterizar esta casa de fim de rua e cruzamento de outra - casa com tanta história para contar, atualmente em coma profundo arrastando consigo as minhas memórias e as de outros que chegaram a uma aldeia rural para recomeçar a vida. Um coma de adormecimento quase letal, esconde imagens, pessoas, vivências aglutinadas entre paredes de granito e madeiras seculares, hoje arruinadas, expostas aos agentes atmosféricos e a outros pequenos invasores, tão inofensivos e tão letais. Esta é uma casa de ilustração de muitas histórias que ainda não foram narradas do pós-abril, nos anos agitados que se seguiram à revolução, quando Portugal rebentava pelas costuras com meio milhão de retornados e refugiados das ex-colónias.   

                Esta casa conhecida por casa dos Guerra e ou por casa dos Fontes, uma mistura que a genealogia se encarrega de explicar em detalhe, localizada no Portugal profundo e numa esquina qualquer de Trás-os-Montes, era o lar de 2 mulheres idosas e solteironas, que se habituaram a viver da ruralidade e na ruralidade dos anos 50 e 60, sem sobressaltos,  temperada com  pitadas de  algumas novidades da modernidade. Esta modernidade centrava-se essencialmente num grande rádio que nunca vi utilizarem, mas que compunha com dignidade uma grande prateleira, uma instalação sanitária completa com loiças negras e uma televisão, que era o motivo de orgulho destas irmãs. Não se importavam de partilhar o serão com vizinhos, pois tal objecto naquela época, rompia definitivamente com a solidão destas sexagenárias e abria-lhes uma janela para um mundo que não se vislumbrava das muitas janelas desta casa de final de rua. Este cenário era reforçado com uma grande varanda fechada com caixilharia de ferro, embrião das célebres marquises citadinas, onde existiam uns cadeirões de verga, e uma salamandra a lenha, permitindo algum conforto nas noites televisivas.

                As irmãs viviam de uma agricultura de subsistência, rentabilizando o leite de duas ou três vacas turinas e viveram alguns anos sem sobressaltos, entre o respeito silencioso às conversas em família do senhor presidente do concelho, proferidas na televisão e as  sonoras gargalhadas provocadas pelo o humor de  Raúl Solnado, cumprindo os seus deveres de católicas praticantes da santa madre igreja. Um dia seguia-se a outro, num ramerame que parecia eterno, pontuados pelas missas de domingo, naquela homogeneidade monocromática das rotinas rurais, entre solstícios e equinócios quase sempre iguais e pelas noites de tourada, onde os ânimos aqueciam, sempre divididos entre, “o coitado do toiro” e “o coitado do forcado”.

                A vida parecia correr nesta mansidão lenta e vagarosa, até à hora que a morte as levasse para o céu. Mas um dia a revolução chegou e adicionou à vida destas mulheres,  a ansiedade e a preocupação pelas famílias que estavam nas ex-colónias, que já não viam há muitos anos, apesar de irmãos, cunhadas, sobrinhas e até um filho, pertencerem a estes familiares distantes e agora desprotegidos pela sorte, pelo destino, por Deus e pelo Portugal democrático .

 As noticias da televisão…

……as cartas que chegavam no correio,

                ----- o testemunho dos que vinham de férias e dos que regressavam em definitivo…..

                Os dias deixaram ser longos e doptados de fáceis rotinas e as muitas horas, converteram-se em tempo que passa rápido no relógio.

                Esta casa feita de muitas casas, dos Guerra e ou dos Fontes como quiserem identificar, com maçadoiro anexo, e aradeira na parede, encheu-se de repente com pessoas distribuídas por 4 gerações. A densidade populacional dentro destas paredes, colapsou. Colapsou no sentido de esgotar, de rebentar, de não caber mais. As duas senhoras idosas viram a sua casa de família a dar abrigo a mais 17 pessoas. As suas solidões pasmadas e serenas foram substituídas pelo encontro em pouco espaço de necessidades diferentes de cada um, e por tudo o que isso provocava: barulho, stress, falta de privacidade, falta de paciência, falta de móveis, falta de comida, falta de caminhos alternativos…

                Os quartos sobrelotaram, desdobraram-se as camas. A cozinha tinha 3 ou 4 fogões. As refeições serviam-se por turnas, pois não cabiam todos à mesa. A grande varanda tipo marquise passou a ser pequena e sitio de polémica na escolha do canal a ver, só havia dois, mas havia 2! e da cadeira mais confortável e melhor posicionada para ver televisão. Comprovou-se aqui neste espaço, como é vulgar, a relatividade; como o definitivo nem sempre o é, como o efémero se associa ao provisório. A vida das pessoas dá reviravoltas impensáveis. Tudo o que era rotineiro e monótono desaguou num rio de movimentos e de imprevisibilidades.

                As idas ao quarto de banho, não sei como se organizavam. Uns fumavam outros não. Uns eram velhos, outros eram crianças e vários nem uma coisa, nem outra. Uns gostariam de nabo na sopa, outros abominariam nabo e outros nem sequer comeriam a sopa. Refeições para 19, 19 pratos e 38 talheres para servir e para lavar, pão proporcional a 19, bacias para lavar roupa de 19, cobertores e lençóis para 19. !9 cumprimentos pela manhã, 19 despedidas no final da noite. Alguns nunca tinham vindo a Portugal, muito menos a Trás-os-Montes, nunca tinham sentido o rigor do inverno, nem o inferno do verão. Uns gostavam de isto, outros gostavam daquilo, uns dormiam tarde, outros dormiam cedo… As duas senhoras de provecta idade nunca tinham sentido tamanha barafunda dentro de portas e nas suas vidas. Penso que deixou de haver paciência para fazer crochet, deixou de haver tolerância para jogar à sueca,  deixou de haver vizinhos a ver a televisão, deixou haver a reza do terço no mês de Maio, deixou de haver …. E passou a haver várias pessoas a falar ao mesmo tempo, passou a haver um cruzar de vivências, passou a haver tolerância, respeito e revolta, nos conflitos… sim porque em todo lado há conflitos... passou a haver 19 escovas de dentes no lavatório do quarto de banho.

                Foi assim no verão de 1975. Um Portugal a rebentar pelas costuras, de lotação esgotada, quase a cairmos para o oceano atlântico. Foi esta capacidade inesgotável de acolher, que tornou possível a integração de meio milhão de pessoas, foi isto que nos distinguiu de outros países com problemáticas semelhantes.

                Os apoios do tal IARN eram reduzidos, apenas me lembra dos cobertores, de alguns litros de leite e uns queijos enlatados…. Valeu a vaca, valeu a horta, valeu o amor e amizade, valeu a capacidade e a vontade de partilhar.

                Os mais novos e mais capazes rapidamente tomaram outros rumos, os mais velhos permaneceram nesta casa feita de muitas casas, até morrer, devolvendo-se progressivamente a outras solidões. Viram cada um partir na sua vez na esperança e na resiliência da construção de uma nova vida e viram a incapacidade de outros, convertida em permanência por falta de alternativas, porque já eram velhos demais.

Hoje esta casa está só, porque todos partiram e as memórias desagregam-se como as folhas caducas do outono, que vão entrando pelas vidraças partidas.

In Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado - Anabela Quelhas

 
Anabela Quelhas (aprendente e anotadora de espaços)
(sem acordo ortográfico)

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Afinal onde é o meu lugar?

(.... e porque Justes também é o meu lugar entre muitos.)


Afinal onde é o meu lugar? 

            Por onde andava eu há 40 anos atrás???

            O dia 25 de abril de 74 apanhou-me a sair da adolescência, numa idade em que já era uma observadora atenta do que me rodeava, sensível aos ideais ligados à igualdade e à fraternidade multicoloridas, conscientemente contra o “orgulhosamente sós” de Salazar, mas ainda saudavelmente ingénua e cheia de sonhos.

            Como estava no hemisfério sul, só tive conhecimento da revolução no final do dia seguinte, muito em segredo antes do jantar, deixando-me de orelhas em pé, pois a referência segredada foi segredada entre adultos apenas. Pareceu-me nascer ali um entusiasmo cauteloso, que me fez ansiar pelos jornais do dia seguinte, para finalmente ver Spínola como grande herói, com fotografias de página inteira, remetendo Otelo para segundo plano e Salgueiro Maia para terceiríssimo e desvalorizado plano. Nessa altura não me apercebi disso, logicamente. Incomodava-me aquele monóculo e o pingalim que segurava na mão, desconfiando da personagem, que tais objectos transportava, parecendo-me mais um tirano do seculo XIX, do que um revolucionário do século XX. Aquele monóculo nada tinha de modernidade. O modelo era Che.  

            Nos dias que se seguiram, o monóculo virou moda e era simulado de forma irreverente por caricas de coca-cola, para posarmos nas fotografias de grupos de amigos adolescentes, crentes num futuro risonho e livre. O poster de Che Guevara colado nas paredes dos quartos, os discos clandestinos de Zeca Afonso, a ideia de um líder chamado Agostinho Neto, deixou de ser utopia e passou a ser tema de conversa constante, num processo de descoberta e aprendizagem rápida da democracia e da liberdade. Eu vivia com o BO (bairro operário) mesmo ao lado, suscitando muita conversa clandestina que o meu espirito curioso retinha, nos anos de adolescente. Contavam-se histórias… o cartão de visita da miscigenação urbana não colhia no meu lado, impulsionando diversas questões que eu ia organizando na cabeça, e que todos omitiam os esclarecimentos de que era ávida.

            Nada mais foi igual, a sociedade de Luanda entrou em sobressalto progressivo. A ideia doce e romântica de uma independência desejada e de um salto de liberdade para um futuro de todos, rapidamente se transformou numa contagem decrescente para a guerra civil, que tal como todas as guerras são injustas, sangrentas, desumanas, mutiladoras e trágicas. A descolonização rápida, necessária, mas pouco eficiente e nada assertiva, gerou meio milhão de retornados e refugiados, seres humanos desprotegidos, incapazes de se organizar e lutar pela sua permanência nos territórios independentes, que apenas tiveram como alternativa, a saída.

            Percebi, com 16 anos, que não tinha autonomia para tomar decisões sobre a minha vida e para a minha vida. Descobri que devia obedecer às decisões dos meus pais, mesmo que me desagradassem profundamente. Constatei que não era suficientemente crescida para viver sozinha na terra que me viu nascer, nem era suficientemente criança, para tudo me passar ao lado.

            Após poucos meses do 25 de abril, anunciaram-me que tinha duas horas para me despedir de Luanda, pois provavelmente iria ter um bilhete de ida para Lisboa, sem volta. Já passava das 18h30m.

            Não fui ouvida, nem achada!

            Trinta minutos foram para comprar dois agasalhos, um casaco de lã azul e uma camisola roxa, que por mero acaso e sorte havia numa loja junto ao local onde vivia. O resto foi a despedida. Despedi-me de lágrimas nos olhos, e vários nós na garganta, de uma cidade linda. Ao longo desse tempo, revi alguns momentos das minhas vivências frágeis e ingénuas, que farão eternamente parte de mim, retive no olhar sítios da minha terra de nascimento e de coração. Faltou-me o tempo para me despedir de amigos, para anotar contactos, para criar novas pontes de ligação para o futuro. Nem queria acreditar que não voltaria, que poderia nunca mais ver e estar com os meus amigos. Algo desconfortável e cada vez mais aterrador se instalou na minha racionalidade, tornando-me incapaz de tudo, excepto obedecer.

            Naquela noite, cresci de repente vários anos. Passei a ser adulta da noite para o dia seguinte, lutando entre duas lógicas, a minha lógica dos afectos e a lógica da descolonização, indiscutivelmente necessária, quanto a mim. Eu já entendia a democracia como meta maior, já tinha observado a digestão difícil de várias revoltas e era sensível ao conflito implícito da acção colonizadora.

            As luzes reflectidas na água negra da baía de Luanda, assumiram formas irregulares e esborratadas, resultantes da luz e das minhas lágrimas silenciosas, que teimavam correr-me pela face enquanto viajava no banco de trás do automóvel do meu pai em direcção ao aeroporto. Conferi cada rua, cada avenida, cada cruzamento… olhei pela última vez os sítios onde me encontrava com os meus amigos.

            No dia seguinte, passei a ser refugiada em terra europeia. A coincidência entre duas realidades: a minha realidade geográfica intersectada com a minha realidade afectiva, temperada pela revolta da não decisão. Entrei num mundo sem fortes referências para mim, onde decorria uma revolução com alguns contratempos pelo meio - eu, cheia de contradições e com novas e maiores responsabilidades, um pouco entregue a mim mesma. O rótulo de retornada e não progressista também se colou a mim em algumas situações menos felizes na integração na sociedade portuguesa. A desconfiança sobre a minha caderneta escolar que testemunhava bons resultados académicos, a desconfiança sobre os meus princípios e valores, a falta de solidariedade entre colegas de escola, e a ausência de camaradagem extra escola, premiaram-me em diversos momentos ao longo de 74/75, nas terras “do choupal até à lapa”.

            A ruptura violenta e traumática nos meus afectos, converteu-me em jovem adulta silenciosa, precoce e introvertida, com as sensibilidades adormecidas, ou talvez anestesiadas, como forma de me proteger das novas realidades. A racionalidade e as emoções, combateram-se num duelo entre uma aprendizagem ideológica e as orientações do politicamente correcto, potencializada através da pintura realizada em horas de ócio no Museu Machado de Castro, ao longo de alguns meses. 

            Alguns amigos foram reencontrados quase 30 anos depois, outros permanecerão sempre no fio da navalha, entre o estar ou não estar vivos.          Quem me desenhou o destino era graficamente inábil como tenho confirmado ao longo da vida.

            Costumo dizer que a minha vida afectiva é um puzzle incompleto, onde faltam algumas peças. Das peças recuperadas, nem todas me trouxeram alegria, pois os anos passaram, e as peças tornaram-se menos luminosas, com contornos desligados da minha história e por vezes contrários às minhas convicções.

            Os anos passaram, não voltei mais.

            Passei a ser assumidamente uma sem terra, ou contrariando e ampliando até ao absurdo, também poderei dizer que passei a ser uma cidadã do mundo, o que em termos práticos dá no mesmo. A lei diz que tenho nacionalidade portuguesa, o meu BI também, e eu continuo a sentir-me sem raízes nos vários locais onde já vivi, neste país. Vivo de sensações armazenadas, entre sombras de jacarandás e aromas de acácias rubras, desconfiguradas em terra fria de bravos navegadores da cauda da europa e uma vontade férrea de inovar com vistas para o futuro.

            Sou portuguesa sem ter nascido aqui e não sou angolana porque não vivo lá. Afinal sou de onde? Um paradoxo desta coisa de se ser eternamente de algum lugar, sem efectivamente o ser, mas que nos preenche os sonhos de todas as noites - a crise de identidade que muitos angolanos sentem e vivem, provavelmente entenderá o verdadeiro e profundo significado destas palavras rabiscadas a partir do 25 de abril de 74.

Afinal onde é o meu lugar? 

In” Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado”

Anabela Quelhas (aprendente e anotadora de espaços)

(sem acordo ortográfico)

Publicado em Notícias de Vila Real